Pousada Sossego do Cacto

Senhor Onofre te espera para o seu primeiro dia como recepcionista em uma pousada macabra.

Pousada Sossego do Cato

Senhor Onofre te espera para o seu primeiro dia como recepcionista em uma pousada macabra.

Sossego do Cacto: Turno da Noite

A quantia era boa demais para recusar. Quinhentos reais por uma noite de trabalho, das dez da noite às cinco da manhã. O anúncio no jornal local era lacônico, quase suspeito: "Recepcionista Noturno para Pousada Sossego do Cacto. Horário: 22h-05h. Pagamento: R$500 ao amanhecer. Requisitos: seguir estritamente as regras." Eu, com o aluguel atrasado e a despensa ecoando um vazio preocupante, não hesitei. Liguei, uma voz rouca do outro lado fez poucas perguntas e me instruiu a comparecer na noite seguinte. E aqui estava eu.

A Pousada Sossego do Cacto ficava afastada da cidade, ao final de uma estrada de terra mal iluminada, ladeada por uma vegetação retorcida que parecia gesticular sob a luz pálida da lua. O nome, "Sossego do Cacto", soava quase como uma piada de mau gosto. A fachada da pousada era antiga, com uma pintura desbotada e janelas escuras como órbitas vazias. Um silêncio pesado pairava no ar, quebrado apenas pelo ranger distante de um portão e o zumbido insistente de algum inseto noturno.

Engoli em seco ao empurrar a pesada porta de madeira da recepção. O interior era pouco mais acolhedor. Um balcão empoeirado, um antigo relógio de parede cujos ponteiros pareciam congelados nas 21:58, e um cheiro de mofo misturado com algo adocicado e indefinível. Sobre o balcão, um envelope amarelado com meu nome escrito em uma caligrafia elegante e antiquada.

Dentro, uma única folha de papel, também amarelada, continha não um contrato, mas um "Roteiro Detalhado do Turno". E, abaixo, as regras.

"Bem-vindo ao seu turno na Pousada Sossego do Cacto," começava o texto. "Seu trabalho é simples: permanecer na recepção das 22:00 às 05:00. Seu pagamento de R$500 será entregue ao amanhecer, contanto que finalize seu turno em segurança. Para isso, é fundamental seguir as cinco regras abaixo. Sem exceções."

Respirei fundo, o coração começando a bater um pouco mais rápido. Quinhentos reais. Era só seguir algumas regras. Que mal poderia haver?

REGRA NÚMERO UM: Seu turno começa às 22:00. Seu principal objetivo é seguir todas as cinco regras para finalizar o turno em segurança e receber o pagamento.

Olhei para o relógio. 21:59. A primeira regra parecia óbvia.

REGRA NÚMERO DOIS: Interação com Seu Onofre (o Vigia): Seu Onofre fará suas rondas. Ele não gosta de conversa nem de contato visual. Caso cruze com ele, um leve aceno de cabeça é o suficiente. Ignore qualquer murmúrio ou som estranho que possa vir dele; ele é peculiar. Observação da Luz do Pátio Interno: A luz do pátio interno deve permanecer acesa, mesmo que esteja falhando. Se ela se apagar completamente, NÃO SAIA PARA VERIFICAR. Tranque a porta da recepção e espere. Algumas coisas preferem a escuridão total.

Um arrepio percorreu minha espinha. "Algumas coisas preferem a escuridão total." Aquilo não soava nada bem. Quem era Seu Onofre? E que "coisas" eram essas? O ponteiro maior do relógio moveu-se com um estalo audível, marcando exatamente 22:00. Meu turno havia começado.

Sossego do Cacto: A Noite Avança

O estalo do relógio pareceu ecoar pela recepção silenciosa, um marco sonoro para o início da minha vigília. Tentei me acomodar na cadeira desconfortável atrás do balcão, os olhos fixos na folha amarelada. A segunda regra era perturbadora, mas a ideia de um vigia peculiar não era de todo incomum em lugares assim, isolados. A parte sobre a luz do pátio e "coisas que preferem a escuridão", no entanto, era mais difícil de engolir. Olhei instintivamente para uma porta nos fundos da recepção, que imaginei levar ao tal pátio interno. Uma fraca luz amarelada filtrava-se por baixo dela. Por enquanto, estava acesa.

Minhas mãos estavam um pouco trêmulas enquanto eu lia a próxima regra.

REGRA NÚMERO TRÊS: Após a Meia-Noite: Quartos de Número Ímpar: Os quartos de número ímpar devem permanecer vazios e trancados. Se você encontrar qualquer uma dessas portas entreaberta ou ouvir qualquer barulho vindo de dentro, por mais baixo que seja, NÃO ENTRE. Você deve apenas fechar e trancar imediatamente a porta.

Quartos de número ímpar. Por quê? E o que aconteceria se eu entrasse? A instrução era clara, quase ameaçadora em sua simplicidade. "Apenas fechar e trancar". Comecei a me perguntar se os quinhentos reais realmente valiam a pena. A sensação de estar sendo observado crescia a cada minuto, apesar de eu estar, aparentemente, sozinho. O ar parecia mais denso, e cada pequeno ruído da velha pousada – um rangido de madeira no andar de cima, o vento assobiando por alguma fresta – me deixava em alerta máximo.

O tempo se arrastava. Cada tique-taque do relógio era uma pequena tortura. Tentei me distrair, folheando uma revista velha e empoeirada que encontrei debaixo do balcão, mas as palavras dançavam diante dos meus olhos, incapazes de prender minha atenção. A imagem dos quartos de número ímpar, vazios e trancados, não me saía da cabeça.

Então, ouvi. Um arrastar suave, vindo do corredor à minha esquerda, onde ficavam os quartos. Meu coração deu um salto. Seria Seu Onofre? Lembrei-me da regra: sem contato visual, apenas um aceno. Prendi a respiração, esperando. O som parou por um instante, depois recomeçou, mais perto. Espiei por cima do balcão, mas o corredor estava mal iluminado, quase na penumbra.

Uma figura alta e curvada surgiu lentamente da escuridão. Não consegui ver seu rosto, apenas a silhueta escura contra a pouca luz. Era ele, Seu Onofre. Ele se movia de uma forma estranha, quase hesitante, e um murmúrio baixo, gutural, acompanhava seus passos. Era exatamente como a regra descrevia.

Quando ele passou em frente à recepção, a cabeça baixa, fiz o que a regra mandava: um leve aceno. Ele não reagiu, continuando seu caminho lento e desaparecendo no corredor oposto. Soltei o ar que nem percebi que estava segurando. O murmúrio peculiar persistiu por mais alguns segundos antes de se extinguir na distância. Minhas mãos suavam. Aquilo tinha sido... desconcertante.

Voltei minha atenção para a lista, para a próxima regra. Minha boca estava seca.

REGRA NÚMERO QUATRO: Entre 3h e 3:33h da Manhã: Telefone da Recepção: O telefone da recepção raramente toca. No entanto, se ele tocar uma única vez neste período específico (entre 3h e 3:33h da manhã), NÃO ATENDA. Você deve deixar tocar até parar, pois "nenhuma boa notícia chega nesse horário."

Três da manhã. O horário das bruxas, como diziam. E agora, um aviso específico sobre o telefone. Olhei para o aparelho antigo sobre o balcão, preto e pesado. Parecia inofensivo, mas a regra o transformava em algo sinistro. "Nenhuma boa notícia chega nesse horário." A frase ecoava as outras advertências veladas. Que tipo de ligação eu poderia receber que seria tão ruim assim?

A noite estava apenas começando, e o Sossego do Cacto já mostrava suas garras.

Sossego do Cacto: A Vigília Solitária

As palavras da quarta regra pairavam no ar como uma promessa sombria. "Nenhuma boa notícia chega nesse horário." Cada regra parecia mais bizarra que a anterior, tecendo uma teia de proibições e advertências que transformavam uma simples noite de trabalho numa espécie de ritual macabro. Respirei fundo, tentando afastar o nó que se formava em meu estômago. Faltava apenas uma regra. A última. Com uma hesitação crescente, meus olhos buscaram o final da folha amarelada.

REGRA NÚMERO CINCO: Final do Turno (05:00): Ao final do seu turno, às 5 da manhã, você deve sair discretamente. Seu Onofre estará na varanda. É a regra mais importante: NÃO SE DESPEÇA E NÃO OLHE PARA ELE. Consequência: Se ele se virar e sorrir para você, isso significa que "a vaga estará aberta novamente na próxima noite."

Um calafrio percorreu minha espinha, mais intenso que os anteriores. A implicação era clara e terrível. Se Seu Onofre sorrisse, eu não teria "finalizado o turno em segurança". A vaga estaria aberta porque o último ocupante... bem, o destino do último ocupante era algo que eu preferia não contemplar. Quinhentos reais. De repente, a quantia parecia pequena, quase insignificante diante da perspectiva sinistra que a última regra pintava.

O relógio na parede marcou onze horas. A noite ainda era uma criança, mas a pousada parecia envelhecer e escurecer ao meu redor. O silêncio agora era mais opressor, carregado de expectativas. Cada sombra parecia se contorcer, cada rangido da madeira antiga soava como um passo furtivo.

De repente, a luz que vinha debaixo da porta do pátio interno piscou. Uma, duas vezes. Meu coração acelerou. "A luz do pátio interno deve permanecer acesa, mesmo que esteja falhando." Falhando. Era exatamente o que estava acontecendo. Ela piscou novamente, mais fraca desta vez, antes de voltar a uma luminosidade trêmula e instável. Prendi a respiração, esperando que não se apagasse completamente. A ideia de trancar a porta da recepção e esperar no escuro, sabendo que "algumas coisas preferem a escuridão total", era apavorante.

A luz estabilizou, mas a tensão permaneceu. Eu estava constantemente alerta, os sentidos aguçados ao extremo. O ponteiro dos minutos movia-se com uma lentidão exasperante em direção à meia-noite, o horário em que a terceira regra entraria em vigor. Os quartos de número ímpar. Vazios e trancados. E se não estivessem? E se eu ouvisse algo? A imagem de uma porta entreaberta, convidando para o desconhecido, começou a assombrar meus pensamentos.

A Pousada Sossego do Cacto não era apenas um lugar antigo e isolado. Era um lugar com segredos, e eu estava preso no coração deles, pelo menos até o amanhecer. Se eu chegasse até lá.

Sossego do Cacto: O Limiar da Meia-Noite

O relógio de parede soltou um gemido metálico quando o ponteiro maior finalmente alcançou o doze. Meia-noite. O ar na recepção pareceu ficar ainda mais frio, mais denso. A regra sobre os quartos de número ímpar ecoava na minha mente: "...devem permanecer vazios e trancados." Engoli em seco, os olhos varrendo nervosamente o corredor mal iluminado à minha esquerda, onde sabia que ficavam os quartos 1, 3, 5 e assim por diante.

Por um longo tempo, nada aconteceu. O silêncio era quase absoluto, quebrado apenas pela minha própria respiração irregular e pelo zumbido distante que persistia lá fora. Comecei a pensar que talvez, apenas talvez, esta noite seria tranquila nesse aspecto. Talvez as portas estivessem todas devidamente trancadas, os quartos realmente vazios. Um fio de esperança.

Então, ouvi. Um clique suave, quase imperceptível.

Vinha do corredor.

Meu corpo enrijeceu. Forcei-me a permanecer imóvel, os ouvidos atentos. Outro clique, seguido por um rangido baixo, o som inconfundível de uma porta se movendo lentamente em suas dobradiças enferrujadas. Meu coração batia descompassado contra as costelas. Era um dos quartos ímpares? Tinha que ser.

Com uma cautela que beirava o pânico, levantei-me devagar, espiando por cima do balcão. A escuridão no corredor dificultava a visão, mas consegui distinguir uma fina fresta de escuridão ainda mais profunda onde antes havia uma porta fechada. A porta do quarto número 3. Estava entreaberta.

"Se você encontrar qualquer uma dessas portas entreaberta..." As palavras da regra queimavam na minha memória. "...NÃO ENTRE. Você deve apenas fechar e trancar imediatamente a porta."

Um arrepio gelado subiu pela minha nuca. Nenhum som vinha de dentro do quarto. Nenhum murmúrio, nenhum movimento. Apenas aquela fresta escura, um convite silencioso para o desconhecido, para o proibido. A tentação de espiar, de entender o que estava acontecendo, era imensa, uma coceira na minha curiosidade que era quase dolorosa. Mas a advertência era clara.

Respirando fundo, reuni toda a coragem que me restava. Eu tinha que fechar aquela porta. Era a regra. Era a única maneira de, talvez, sair dali com os quinhentos reais e, mais importante, com a minha sanidade – ou talvez até mesmo com a minha vida.

Com as pernas trêmulas, contornei o balcão e comecei a andar em direção ao corredor, cada passo ecoando alto demais no silêncio opressor da Pousada Sossego do Cacto. A fresta escura do quarto 3 parecia me observar, me atrair.

Sossego do Cacto: A Porta Proibida

A madeira do assoalho rangia sob meus pés a cada passo hesitante em direção ao corredor. A distância até a porta entreaberta do quarto 3 parecia aumentar a cada segundo. O ar ali era mais frio, e um cheiro sutil, diferente do mofo da recepção – algo metálico e levemente adocicado, como o que senti ao entrar – flutuava vindo da fresta escura.

Parei a poucos metros da porta. A escuridão lá dentro era total, impenetrável. Nenhum som. A regra era clara: "NÃO ENTRE. Você deve apenas fechar e trancar imediatamente a porta." Minha mão suava frio enquanto eu a estendia em direção à maçaneta de latão, gasta pelo tempo.

Hesitei por um instante. E se houvesse algo ou alguém ali, esperando? E se, ao tocar a porta, ela se abrisse completamente, revelando o que quer que se escondesse naquelas sombras? A curiosidade e o medo travavam uma batalha feroz dentro de mim. Mas a imagem da última regra, a visão de Seu Onofre sorrindo e a vaga "aberta novamente", impulsionou-me.

Com um movimento rápido, antes que a coragem me abandonasse, agarrei a maçaneta e puxei a porta, fechando-a com um baque surdo que ecoou pelo corredor silencioso. Meus dedos trêmulos buscaram a fechadura. A chave não estava ali. Claro que não estaria. A regra dizia para trancar. Olhei ao redor, freneticamente. No batente da porta, pendurada num pequeno prego, estava uma chave antiga de ferro.

Agarrei-a, o metal gelado contra minha pele. Enfiei-a na fechadura. Girou com um rangido áspero, e o mecanismo interno estalou, trancando a porta.

Soltei um suspiro trêmulo de alívio, mas ele morreu na garganta.

No instante em que a porta foi trancada, ouvi um som vindo de dentro do quarto 3. Um único, suave, arrastar. Como se algo pesado tivesse sido movido lentamente pelo chão.

Gelei.

Não havia dúvida. Havia algo ali dentro. E eu o havia trancado.

Recuei apressadamente, quase tropeçando nos meus próprios pés, voltando para a relativa segurança do balcão da recepção. Meu coração martelava no peito, e a adrenalina corria solta. O que era aquilo? Um hóspede que não deveria estar ali? Ou algo... diferente?

Olhei para o relógio. Ainda faltavam horas para o amanhecer. Horas para a regra do telefone, horas para o confronto final com Seu Onofre. E agora, a certeza incômoda de que eu não estava sozinho nos corredores da Pousada Sossego do Cacto, e que uma das "coisas" que preferiam a escuridão estava agora trancada a poucos metros de mim, atrás da porta do quarto de número ímpar. A noite seria longa. Muito longa.

Sossego do Cacto: Ecos na Madrugada

Voltei para trás do balcão da recepção, mas a sensação de segurança era uma ilusão frágil. Cada sombra parecia mais longa, cada som da velha pousada – o vento que sibilava lá fora, o estalar da madeira – parecia amplificado, carregado de um significado oculto. A imagem da porta trancada do quarto 3 e o som do arrastar que viera de dentro repetiam-se em minha mente. O que quer que estivesse ali, estava consciente da minha presença, consciente de que eu o havia aprisionado.

As horas seguintes passaram numa névoa de ansiedade e exaustão. Tentei ler a revista empoeirada novamente, mas as letras não faziam sentido. Meus olhos ardiam pela falta de sono e pela tensão constante. De vez em quando, Seu Onofre passava em sua ronda, sua silhueta curvada e seus murmúrios guturais servindo como um lembrete constante da estranheza daquele lugar. Eu apenas acenava brevemente, como instruído, o coração disparado até que ele desaparecesse novamente na penumbra dos corredores.

A luz do pátio interno continuava a piscar intermitentemente. Cada vez que ela ameaçava apagar-se, meu sangue gelava. Eu me agarrava à esperança de que ela resistisse, pois a ideia de trancar a porta da recepção e ficar na escuridão total, sabendo o que poderia estar lá fora – ou mesmo ali dentro – era insuportável.

O relógio na parede parecia zombar de mim, seus ponteiros movendo-se com uma lentidão agonizante. Uma da manhã. Duas da manhã. A cada hora que passava, a pousada parecia afundar mais na noite, e com ela, minha coragem.

De repente, um novo som quebrou o silêncio tenso. Não era um rangido, nem o vento, nem os murmúrios de Seu Onofre. Era um som mais definido, mais próximo. Um leve bater.

Vinha do corredor dos quartos ímpares. Mais especificamente, da direção do quarto 3.

Três batidas suaves, ritmadas. Pausa. Mais três batidas.

Meu corpo paralisou. Não era o arrastar de antes. Era deliberado. Alguém – ou alguma coisa – estava batendo na porta por dentro. Tentando sair? Ou tentando chamar minha atenção?

A regra era clara sobre não entrar, mas nada dizia sobre interações através da porta. O medo e uma pontada de curiosidade mórbida lutavam dentro de mim. Ignorei. Tinha que ignorar. Seguir as regras era a única forma de sobreviver àquela noite.

As batidas pararam por um momento, e um silêncio ainda mais pesado se instalou. Prendi a respiração, esperando. Então, recomeçaram, um pouco mais insistentes desta vez. E, por baixo do som das batidas, quase imperceptível, ouvi outra coisa. Um sussurro. Tão baixo que mal pude distinguir, mas estava lá. Sibilante, arrastado, parecia formar palavras que eu não conseguia – e talvez não quisesse – entender.

O relógio marcou duas e trinta. A janela de tempo da quarta regra, a do telefone, aproximava-se perigosamente. E agora, isso. A criatura no quarto 3 estava se tornando mais ativa. A noite no Sossego do Cacto estava longe de terminar.

Sossego do Cacto: A Hora Maldita

Os sussurros e as batidas vindas do quarto 3 cessaram tão subitamente quanto começaram, deixando um silêncio ainda mais carregado de tensão. Olhei para o relógio na parede. Duas e cinquenta e sete. Faltavam três minutos para as três da manhã, o início do período crítico da quarta regra. O telefone.

O aparelho preto e antigo no balcão parecia observar-me, um oráculo silencioso de más notícias. "Se ele tocar uma única vez neste período específico (entre 3h e 3:33h da manhã), NÃO ATENDA." A instrução era inequívoca. Mas a antecipação era uma tortura. E se tocasse? A curiosidade humana é uma força poderosa, mesmo diante do medo. Que tipo de voz estaria do outro lado? Que mensagem traria?

Tentei focar noutra coisa. A luz do pátio interno continuava a sua dança hesitante, mas ainda resistia. Seu Onofre não fazia uma ronda há algum tempo, o que, estranhamente, não me tranquilizava. O silêncio dele era quase tão perturbador quanto os seus murmúrios.

Dois e cinquenta e oito.

O suor escorria pela minha testa. Meus músculos estavam tensos, cada nervo à flor da pele. O ar parecia crepitar com uma energia invisível.

Dois e cinquenta e nove.

Fechei os olhos por um instante, respirando fundo, tentando acalmar o coração que ameaçava saltar pela boca. Abri-os novamente, fixando o olhar no telefone. Era como esperar por uma execução.

TRÊS HORAS DA MANHÃ.

O ponteiro maior do relógio alinhou-se com o doze com um estalo que soou como um tiro no silêncio da recepção. Prendi a respiração. Nada. O telefone permaneceu mudo. Um minuto se passou. Dois. A tensão era quase palpável. Cada segundo se arrastava, uma eternidade.

Então, aconteceu.

Um som estridente, agudo, cortou o silêncio como uma faca. O telefone estava a tocar.

O toque era antigo, metálico, e parecia ecoar por toda a pousada, penetrando nos meus ossos. Um único toque, exatamente como a regra previa. Meu coração deu um salto violento. Instintivamente, minha mão moveu-se em direção ao auscultador, mas parei a meio caminho, as palavras da regra ecoando na minha mente: "NÃO ATENDA."

O telefone continuou a tocar, o som implacável a encher a recepção. Era um teste. Uma provocação. A tentação de atender, de acabar com aquela tortura sonora, de saber quem ou o quê estava do outro lado, era quase irresistível. Mas a advertência era clara: "nenhuma boa notícia chega nesse horário."

Fechei os punhos com força, as unhas cravando-se nas palmas das mãos. Olhei para o telefone, que continuava o seu chamado insistente. Cada toque parecia mais alto, mais urgente. Deixei tocar. Tinha que deixar tocar. Era a regra. Era a minha única hipótese.

O som parecia não ter fim, vibrando no ar, nos meus ouvidos, na minha alma.

Sossego do Cacto: O Silêncio Ensurdecedor

O toque do telefone persistiu pelo que pareceu uma eternidade. Cada campainha era um golpe nos meus nervos já em frangalhos. Cobri os ouvidos com as mãos, mas o som metálico e agudo parecia perfurar qualquer barreira. Fechei os olhos com força, repetindo mentalmente a regra: "Não atenda. Deixe tocar até parar." Era uma batalha de vontades, a minha contra a curiosidade insidiosa e o medo crescente de que o som nunca cessasse.

E então, tão subitamente como começou, o telefone calou-se.

O silêncio que se seguiu foi quase mais perturbador do que o toque estridente. Era um silêncio pesado, denso, carregado de uma expectativa não cumprida. Abri os olhos lentamente, a respiração presa na garganta. O aparelho preto continuava ali, imóvel, mas agora parecia ainda mais sinistro, como se guardasse um segredo terrível que eu, por pouco, não descobrira.

Olhei para o relógio. Três e dez da manhã. Eu tinha resistido. Tinha seguido a regra. Uma onda de alívio misturada com exaustão percorreu o meu corpo. Senti-me como se tivesse acabado de atravessar um campo minado.

Mas a noite estava longe de terminar. Ainda faltavam quase duas horas para o amanhecer, para o final do turno e para a última, e talvez mais crucial, regra: o encontro com Seu Onofre na varanda.

Tentei recompor-me. Bebi um gole de água de uma garrafa que trouxera, a mão ainda a tremer ligeiramente. O incidente com o telefone deixara-me abalado, mais do que o encontro com Seu Onofre ou a porta do quarto 3. Havia algo na natureza daquela chamada, na sua temporalidade precisa e na advertência sombria, que me gelava até aos ossos.

O que aconteceria se eu tivesse atendido? Que "má notícia" teria chegado? E quem, ou o quê, estaria do outro lado da linha, naquela hora da madrugada, numa pousada isolada como o Sossego do Cacto? Eram perguntas que, felizmente, permaneceriam sem resposta.

A luz do pátio interno continuava a sua luta intermitente contra a escuridão, um pequeno farol de esperança na penumbra da recepção. Concentrei-me nela, tentando encontrar alguma normalidade, algum ponto de ancoragem naquela noite surreal.

De repente, um novo som. Desta vez, não vinha do corredor dos quartos nem do telefone. Vinha de fora. Um arrastar pesado, seguido por um rangido metálico. Parecia vir da direção da varanda frontal.

Meu coração voltou a acelerar. Seria Seu Onofre, já a postos para o final do turno? Mas ainda era cedo. Faltava muito para as cinco da manhã.

O som repetiu-se, mais próximo. Um sentimento de mau presságio começou a instalar-se. A última regra era clara sobre não olhar para ele e não se despedir às cinco da manhã. Mas o que aconteceria se ele aparecesse antes? E se ele não estivesse apenas na varanda, mas a tentar entrar?

Sossego do Cacto: A Aproximação Final

O som do arrastar e o ranger metálico lá fora cessaram por um momento, apenas para serem substituídos por um silêncio ainda mais tenso. Fiquei imóvel atrás do balcão, os ouvidos atentos a qualquer indício do que poderia estar a acontecer. A porta principal da recepção, uma pesada estrutura de madeira, parecia ser a única barreira entre mim e o que quer que estivesse na varanda.

Olhei para o relógio. Quatro e quinze da manhã. O tempo parecia escoar de forma errática, ora arrastando-se, ora saltando em blocos de minutos que desapareciam num piscar de olhos. A exaustão começava a cobrar o seu preço, embotando os meus sentidos, mas a adrenalina ainda me mantinha alerta, num estado de vigília febril.

Então, ouvi passos. Pesados, arrastados, inconfundivelmente os de Seu Onofre. Mas não vinham dos corredores internos. Vinham da varanda, aproximando-se da porta da recepção.

Prendi a respiração. A regra era clara: às cinco da manhã, sair discretamente, Seu Onofre estaria na varanda, não olhar, não se despedir. Mas ele estava ali, quase uma hora antes, e do lado de fora da porta. Isto não estava no roteiro.

Os passos pararam mesmo em frente à porta. Um silêncio opressor instalou-se, quebrado apenas pelo som da minha própria respiração acelerada e pelo bater do meu coração, que parecia ecoar pela sala. Imaginei a sua silhueta curvada do outro lado, talvez a observar a porta, a saber que eu estava ali.

O que é que ele queria? Estaria a testar-me novamente? Ou seria algo diferente, algo não previsto nas regras?

De repente, a maçaneta da porta da recepção começou a girar. Lentamente, com um rangido metálico que me fez saltar. Alguém estava a tentar abrir a porta do lado de fora.

O pânico apoderou-se de mim. Não havia nenhuma regra específica para esta situação. A porta estava trancada? Eu nem me lembrava de a ter verificado desde que entrara. Instintivamente, atirei-me ao chão atrás do balcão, o corpo a tremer incontrolavelmente. Se ele entrasse... o que aconteceria? A regra sobre não o olhar, não interagir, seria impossível de cumprir.

A maçaneta continuou a girar, forçando a fechadura. Ouvi um murmúrio baixo e gutural do outro lado, o som peculiar de Seu Onofre, agora distorcido pela madeira da porta, soando ainda mais ameaçador.

E então, tão subitamente como começou, a tentativa de abrir a porta parou. Os murmúrios cessaram. Ouvi novamente os passos arrastados, afastando-se da porta, recuando pela varanda.

Soltei o ar que nem percebera estar a prender, o corpo ainda tenso. O que tinha sido aquilo? Uma tentativa de entrar? Ou apenas mais um dos seus comportamentos peculiares?

Levantei-me com cautela, espreitando por cima do balcão. A porta continuava fechada. A maçaneta estava imóvel.

O relógio marcava quatro e trinta. Apenas mais trinta minutos. Trinta longos minutos até poder sair dali. Mas a imagem de Seu Onofre na varanda, a tentar forçar a entrada, não me saía da cabeça. A última regra, a mais importante, parecia agora ainda mais carregada de perigo. Ele estaria à minha espera. E o seu comportamento recente sugeria que o encontro final poderia ser tudo menos discreto.

A luz do pátio interno piscou violentamente e, com um estalido final, apagou-se, mergulhando a parte de trás da recepção numa escuridão quase total. "Se ela se apagar completamente, NÃO SAIA PARA VERIFICAR. Tranque a porta da recepção e espere, pois 'algumas coisas preferem a escuridão total'."

A porta da recepção. A que Seu Onofre acabara de tentar forçar. Estaria trancada?

Sossego do Cacto: Na Penumbra da Madrugada

O estalido da luz do pátio a apagar-se foi como um golpe final. A escuridão que se instalou na parte de trás da recepção era palpável, uma presença fria que parecia rastejar em minha direção. A única iluminação vinha agora da fraca lâmpada sobre o balcão e da luz pálida da lua que entrava pelas janelas da frente, desenhando sombras longas e distorcidas.

"Tranque a porta da recepção e espere." A regra ecoou na minha mente. A porta da recepção. A que dava para a varanda onde Seu Onofre estivera momentos antes.

Com o coração a bater descontroladamente, aproximei-me da porta principal. Minhas mãos tremiam tanto que mal conseguia segurar a maçaneta. Tentei girar a pequena tranca de metal. Estava emperrada. Forcei um pouco, e com um clique metálico, a tranca cedeu, deslizando para o lugar. A porta estava agora, de facto, trancada. Um pequeno alívio, mas a sensação de vulnerabilidade persistia. Seu Onofre tentara entrar. E agora, a escuridão do pátio parecia convidar outras presenças.

Voltei para trás do balcão, sentindo-me encurralado. A escuridão atrás de mim, a porta trancada à minha frente, e a certeza de que algo ou alguém lá fora me esperava. O silêncio era quase total, quebrado apenas pelo tique-taque incessante do relógio na parede.

Quatro e quarenta. Vinte minutos.

Os minutos seguintes foram os mais longos da minha vida. Cada segundo era uma tortura. Mantive os olhos fixos na porta da recepção, esperando, temendo, o regresso de Seu Onofre. A escuridão do pátio atrás de mim parecia respirar, e eu lutava contra a vontade de olhar para trás, de confirmar se algo emergira das sombras. "Algumas coisas preferem a escuridão total." A frase repetia-se como um mantra sinistro.

Quatro e cinquenta. Dez minutos.

A exaustão e o medo criavam um cocktail perigoso. Minha mente começava a pregar-me partidas. Sombras dançavam no canto dos olhos, e cada pequeno ruído parecia amplificado. Teria eu trancado a porta a tempo? Estaria Seu Onofre ainda lá fora, à espera? E o que eram aquelas "coisas" que preferiam a escuridão?

Quatro e cinquenta e cinco. Cinco minutos.

Agarrei a alça da minha mochila, que deixara ao lado da cadeira. Nela, apenas a minha carteira e as chaves de casa. E a folha amarelada com as regras, que eu guardara como se fosse um talismã.

Quatro e cinquenta e oito. Dois minutos.

Respirei fundo, tentando preparar-me para o que viria. A última regra. Sair discretamente. Seu Onofre na varanda. Não olhar para ele. Não se despedir. E a consequência terrível se ele sorrisse.

Quatro e cinquenta e nove. Um minuto.

O silêncio era absoluto. Até o vento lá fora parecia ter parado de soprar. Era a calma antes da tempestade.

CINCO HORAS DA MANHÃ.

O relógio de parede soltou cinco badaladas metálicas, lentas e solenes, cada uma ecoando pela recepção como um decreto final. O meu turno terminara.

Levantei-me, as pernas bambas. Peguei na mochila. Era agora ou nunca. Tinha de sair. Tinha de enfrentar a varanda. Tinha de enfrentar Seu Onofre. E, acima de tudo, tinha de evitar aquele sorriso.


Sossego do Cacto: O Amanhecer e o Medo Final

Com as pernas a tremer, mas impulsionado por uma mistura de medo e a promessa dos quinhentos reais, destranquei a porta da recepção. O metal frio da maçaneta pareceu queimar a minha pele. Empurrei a porta lentamente, uma fresta de cada vez, o coração a bater como um tambor descontrolado.

A primeira luz do amanhecer pintava o céu lá fora com tons de cinzento e laranja pálido. A varanda estava banhada numa luz fantasmagórica. E lá estava ele.

Seu Onofre.

De costas para mim, a silhueta curvada e imóvel, a observar o nascer do sol. Exatamente como a regra previra.

"Sair discretamente. NÃO SE DESPEÇA E NÃO OLHE PARA ELE."

As palavras da quinta regra eram um grito silencioso na minha mente. Mantive a cabeça baixa, os olhos fixos no chão de madeira da varanda. Cada passo era calculado, silencioso. Passei por ele, a poucos metros de distância. O cheiro peculiar que o acompanhava – uma mistura de terra húmida e algo indefinivelmente velho – invadiu as minhas narinas.

Contive a respiração, esperando que ele não se mexesse, que não se virasse. A tensão era quase insuportável. Continuei a andar, os olhos pregados no primeiro degrau da escada da varanda que levava ao caminho de terra.

Um passo. Dois passos.

Ouvi um movimento atrás de mim. Um leve arrastar de botas no chão de madeira.

Gelei. O meu sangue pareceu transformar-se em gelo nas veias. Ele estava a virar-se?

Não olhei. Não podia olhar. A regra era clara. A minha sobrevivência, o meu pagamento, tudo dependia disso.

Continuei a andar, mais rápido agora, quase a correr, descendo os degraus da varanda, os pés a encontrarem o caminho de terra batida. O som do arrastar atrás de mim parou.

Atrevi-me a olhar de relance, não para ele, mas para a sua sombra projectada no chão pela luz crescente do amanhecer. A sombra estava imóvel, ainda de costas. Um suspiro de alívio escapou-me pelos lábios.

Continuei a afastar-me da Pousada Sossego do Cacto o mais depressa que as minhas pernas conseguiam, sem olhar para trás. O sol começava a surgir no horizonte, e com ele, a promessa de segurança.

Quando já estava a uma distância considerável, onde a pousada era apenas uma silhueta escura contra o céu cada vez mais claro, parei por um instante, ofegante. Olhei para a minha mão. Nela, amarrotada, estava a folha amarelada com as regras. E, enfiado debaixo dela, um envelope. Dentro, notas de dinheiro. Quinhentos reais.

Eu tinha conseguido. Tinha sobrevivido à noite. Tinha seguido as regras.

Mas, enquanto me afastava pela estrada de terra, uma última imagem assaltou-me a mente. A sombra de Seu Onofre. Teria sido apenas a minha imaginação, exausta e assustada, ou, por uma fração de segundo, antes de eu desviar o olhar, a sombra pareceu curvar-se ligeiramente, como se um sorriso lento e invisível se formasse nos lábios do seu dono?

A dúvida, como uma semente de cacto, fincou-se na minha mente. E a pergunta persistiu, ecoando com o vento da manhã: estaria a vaga realmente preenchida, ou o Sossego do Cacto esperaria por mim na noite seguinte?


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