Mercadinho Preá

Descubra os detalhes desse mercado repleto de acontecimentos sobrenaturais

3/6/20245 min read

Mercadinho Preá

Descubra os detalhes desse mercado repleto de acontecimentos sobrenaturais.

Capítulo 1: A Vaga da Madrugada

R$ 800 por noite.
Foi isso que me chamou a atenção no cartaz colado na vidraça do Mercadinho do Preá, numa folha A4 manchada de café e com a tinta desbotando ao sol. Um valor absurdo para vigiar um mercado vazio durante a madrugada. O tipo de coisa que ninguém acreditaria ser real — mas eu estava desesperado, e quando se está com a geladeira vazia, tudo parece mais aceitável.

“Vaga para turno noturno. 23h às 5h. Pagamento imediato. Falar com Dona Conceição.”

Entrei no mercadinho naquela tarde abafada, receoso. Era um lugar simples, com prateleiras apertadas, cheiro de tempero e algo azedo que vinha do fundo. Fui direto ao balcão, onde uma senhora baixinha, de vestido florido e olhar de pedra, me olhou como se já soubesse por que eu estava ali.

— Pode começar hoje mesmo — disse ela. — Mas tem regras. Regras que você precisa seguir à risca. Se quebrar uma, só uma, não vai dar tempo de se arrepender.

Anuí, sem entender o peso do que ela acabava de dizer.

E assim começou minha primeira noite no Mercadinho do Preá.

Capítulo 2: O Café e os Sinais

Às 22h50 eu estava na frente do mercado, com a chave na mão e um frio percorrendo minha espinha, apesar do calor. Dona Conceição tinha deixado a porta destrancada para mim. Lá dentro, tudo parecia igual ao dia — luzes brancas, produtos alinhados, silêncio absoluto.

No balcão próximo aos temperos, encontrei a tal garrafa térmica. Um aroma forte e amargo escapava da tampa mal encaixada. Um bilhete, preso com fita ao inox gasto, dizia:

“Uma xícara por hora. Não menos.”

Achei engraçado, mas segui. Às 23h em ponto, tomei a primeira xícara. Quente, forte, desagradável. Um tremor leve percorreu meu corpo, como se o café estivesse mais vivo do que deveria. Coloquei o boné na cabeça e iniciei a ronda.

Às 00h tomei a segunda. Tudo seguia normal.

Mas foi às 01h13 que algo mudou.

Capítulo 3: Vozes na Carne

Passei pelo setor dos refrigerados e me aproximei dos açougues. As luzes ali piscavam às vezes, nada demais. Mas então ouvi — uma conversa.

Era baixa, abafada, como gente comentando algo num tom doméstico, trivial. Frases picadas, nomes soltos: "Maria... pega a costela...", "O menino vai acordar...". Mas não havia ninguém.

Quando me aproximei do balcão de carnes, o som cessou abruptamente. Um silêncio repentino e espesso me envolveu.

Lembrei da segunda regra.

Tirei o boné, com as mãos tremendo, e falei:

— Boa noite, seu Antônio. Boa noite, dona Maria.

Silêncio por dois segundos. Então, um som metálico: como uma faca arranhando uma tábua de madeira.

Continuei andando. Sem olhar pra trás.

Capítulo 4: O Olho Costurado

O boneco estava lá. Pequeno, de pano cru, com olhinhos de botão e boca costurada com linha vermelha. Sentado em cima de uma caixa de promoções na entrada, com as perninhas penduradas.

Observei aquele mascote estranho por alguns segundos. Era quase engraçado.

“Se às 3:33 ele não estiver lá, corra pro almoxarifado.”

A frase martelava em minha mente. Mais uma das regras bizarras da Dona Conceição.

Segui a madrugada com os olhos grudados no relógio. Café às 2h. Café às 3h.

E então, às 3:33 exatas, olhei para a entrada.

O boneco tinha sumido.

Capítulo 5: Porta Fechada, Pulso Aberto

Corri.

Não pensei, não chamei, não hesitei. Apenas corri em disparada para o almoxarifado, tropeçando em caixas, batendo o ombro nas prateleiras. Atrás de mim, ouvi passos pequenos e rápidos. Um riso infantil, abafado. E algo arrastando no chão.

Tranquei a porta do almoxarifado e me joguei no chão, arfando.

Ali, rodeado de vassouras, papel higiênico e latas de leite condensado, passei os piores vinte e sete minutos da minha vida.

Às 4h em ponto, abri a porta.

O boneco estava de volta à entrada. Sentado. Como se nunca tivesse saído.

Capítulo 6: Os Sons do Depósito

Às 4h10, enquanto bebia minha última xícara, ouvi.

Arranhões.

Depois batidas.

E então, sussurros: “Por favor... ajuda... eu tô aqui ainda... abre...”

Vinha do depósito. O grande portão nos fundos.

Levantei, trêmulo, e fui até lá. Os sons aumentavam conforme eu me aproximava, como se soubessem que eu estava vindo.

O cadeado estava... fechado. Intacto.

Respirei aliviado.

Mas quando encostei a mão na tranca, ela se mexeu — sozinha.

Dei um passo para trás, puxei o celular, e encarei a garrafa térmica.

O número estava ali. Um papel grudado com fita larga. Liguei.

— Dona Conceição?

— Fala.

— O depósito está aberto.

— Entendi. Fique longe. E continue tomando o café. Não importa o que escute. Até as cinco. Você me escutou?

— Escutei.

Ela desligou.

Os sussurros continuaram, mas agora com raiva.

Capítulo 7: O Preço do Café

Faltavam vinte minutos para as cinco.

Os sons do depósito se intensificaram. Agora havia gritos, batidas fortes como se alguém jogasse o corpo contra a porta. A estrutura vibrava. As luzes do mercadinho piscavam, e o boneco havia desaparecido — de novo.

Mas eu permaneci firme. Café nas mãos, garganta seca. Suava frio, mas não me movi. Tomei o último gole da bebida infernal às 4h55, sentindo minha alma queimar com o líquido.

Às 4h59, o som cessou. Um silêncio absoluto se instalou. Como se o mundo tivesse parado.

Às 5h em ponto, a porta da frente se abriu.

Capítulo 8: O Pagamento

Dona Conceição entrou como se o caos da noite não existisse.

Com passos lentos, se aproximou, abriu a bolsinha de couro e contou R$ 800 em notas de cinquenta e cem, uma a uma, sem dizer palavra.

Entregou o dinheiro, olhou nos meus olhos e falou:

— Até amanhã, meu filho. O trabalho é seu pelo tempo que quiser.

Assenti, ainda tremendo.

Atrás dela, vi o boneco de pano sentado novamente em seu lugar.

Ela saiu sem olhar pra trás. E eu fiquei ali, segurando o dinheiro como se ele pesasse toneladas.

Capítulo 9: O Segundo Turno

Na noite seguinte, voltei. E na outra também.

O mercado virou meu mundo. Cada regra, um ritual sagrado. Cada xícara, uma dose de lucidez.

Os sons, os sussurros, os olhos do boneco — tudo fazia parte da rotina agora. Aprendi a não hesitar. A não questionar. A respeitar.

O Mercadinho do Preá era mais do que um comércio. Era um organismo pulsante. E eu era o único permitido a cuidar dele.

Capítulo 10: Ninguém Nunca Pediu Demissão

Hoje faz quarenta e duas noites.

Ainda ganho meus R$ 800 por turno. Ainda tomo o café.

Nunca vi o que há dentro do depósito. Nunca deixei de seguir uma regra.

E nunca conheci alguém que trabalhou aqui antes de mim. Mas tenho quase certeza de que existiram. Ou existem.

Porque às vezes, nas madrugadas mais silenciosas, eu ouço passos no teto.

E uma voz, muito baixa, dizendo:

“Boa noite, seu Antônio...”

Boa noite. Seja lá onde vocês estejam. Eu sigo aqui.

Seguindo as regras. Tomando o café.

Até amanhã.

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