Fazenda em Serra Sombria

Esta fazenda um tanto quanto peculiar está precisando de novos funcionários, o que você acha de tentar ajudá-los?

6/9/20254 min read

Fazenda em Serra Sombria

Esta fazenda um tanto quanto peculiar está precisando de novos funcionários, o que você acha de tentar ajudá-los?

Capítulo 1: O Primeiro Canto do Galo

O sol desaparecia atrás dos morros quando Vicente pisou pela primeira vez na porteira da Fazenda Cabra Dourada. O céu avermelhado parecia um aviso e não uma despedida. O silêncio era grosso, quase palpável. Apenas o som ralo das folhas secas sob seus pés quebrava o clima de reverência.

Um senhor de chapéu de palha — que nunca se apresentou — apenas lhe entregou uma lanterna, uma prancheta com as regras impressas, e apontou para uma porta de madeira carcomida ao lado do curral.
“A sala do vigia. Café quente a noite toda. Boa sorte, moço.”

Vicente entrou. O aposento era apertado, com uma cama de arame, uma garrafa térmica fumegando e um balde de zinco ao lado.
A prancheta tremia em suas mãos. Leu em voz alta as instruções: quatro regras. Quatro pequenos parágrafos que separavam o turno da sanidade. Ele riu, sem achar graça.

Às 18h04, pegou a lanterna e saiu para começar o trabalho.

Capítulo 2: A Trigésima Quarta Cabra

Ao lado do chiqueiro, as cabras pastavam lentamente. Vicente acendeu a lanterna e começou a contá-las, em voz alta, como mandava a primeira regra:
"Uma... duas... três..."

Chegou à trigésima terceira. Uma cabra magricela ergueu a cabeça, encarando-o. Vicente prosseguiu, um pouco hesitante:
"Trinta e quatro..."

Silêncio absoluto. A última cabra — aquela que não devia estar ali — virou-se com um movimento seco, como se seus ossos estalassem para fora do corpo. O coração de Vicente acelerou. Ele se lembrou da regra: fechar os olhos, respirar fundo, contar de novo.

Obedeceu. Apertou os olhos até ver estrelas, encheu os pulmões e começou:
"Uma... duas..."

Na segunda contagem, tudo pareceu normal. Trinta e três.
Mas, ao virar as costas, ouviu um leve arrastar de cascos atrás de si.

Capítulo 3: Luz Fraca e Olhos Baixos

O celeiro rangia como um barco prestes a afundar. As vacas estavam ali, imóveis, como estátuas de carne. Vicente contava, apressado:
"Uma... duas... sete... nove."

Faltava uma.

Engoliu em seco. Pegou a lanterna e seguiu até o silo, os passos engolidos pela terra seca. Lá, de costas para ele, estava a décima vaca. Imensa. Silenciosa.

Lembrou-se da regra: não encare, abaixe a luz. Ele girou o foco da lanterna para o chão, virou de costas lentamente e começou a andar.

Atrás de si, passos. Mas não pareciam de vaca. Tinham ritmo desigual, quase humano. Um passo arrastado, outro firme. Vicente suava frio.

Chegou ao celeiro e entrou sem olhar para trás. As dez vacas estavam lá. Todas imóveis. Inclusive a última, com os olhos muito abertos, focados nele.

Capítulo 4: O Capataz Que Não Vai Embora

Na madrugada, enquanto revisava o curral, Vicente ouviu alguém assobiando. Um assovio lento, arrastado. De trás do milharal, surgiu um homem alto, vestido com camisa social e calças engomadas, um lenço amarelado no pescoço.

"Trabalho pesado hoje, hein, compadre?", disse ele. "Vamos ali na roça ver uma coisa."

Vicente travou. Era a terceira regra. O homem parecia real. Chegava a fazer sombra. Mas ele sabia: era o único funcionário.

Apenas negou com a cabeça e deu meia-volta.

"Não vai mesmo?", perguntou o homem, sorrindo de forma dura. "Tem coisa lá que só você pode cuidar."

Vicente não respondeu. Continuou andando, fingindo calma. Quando olhou por sobre o ombro, o homem não estava mais lá. Mas o assobio persistia, ecoando entre as plantações.

Capítulo 5: O Poço e os Sussurros

Perto das três da manhã, Vicente foi até a área do poço. A tampa de madeira estava em seu lugar, mas o vento soprava forte e carregava lamentos — vozes finas, quase infantis, chorando palavras sem sentido.

"Tá com sede... sede..."

Vicente se ajoelhou e conferiu se a corrente estava presa. Estava. Ele ajeitou a tampa, apertou os parafusos com o canivete que trazia no bolso.

As vozes aumentaram. "Deixa beber..."

Lembrou da quarta regra. Apenas o vento do sertão. Nada além disso.
Voltou para a sala do vigia. Não olhou para trás, mesmo quando um barulho seco, como unhas na madeira, veio do poço.

Capítulo 6: Madrugada Sem Estrelas

O tempo parecia congelado. O café já não tinha gosto. O silêncio da fazenda era opressivo. Vicente sentia que algo observava cada passo seu, como se a própria noite respirasse contra sua nuca.

Às quatro e meia, ouviu o balido de uma cabra.
Ao checar o chiqueiro, todas estavam lá. Trinta e três. Exceto por uma que olhava fixamente para ele com olhos escuros como poço.

Virou-se rápido. A figura do antigo capataz estava parada no portão da frente. Não se movia. Só olhava.

Vicente trancou-se na sala e ficou ali, até o primeiro canto do galo.

Capítulo 7: O Canto e o Pagamento

O galo cantou às 5h02. O som quebrou o feitiço da noite. Vicente saiu da sala com passos trêmulos. As cabras estavam tranquilas, as vacas dormiam como se nada tivesse acontecido.

No chão, à porta da sala, um envelope pardo. Dentro, vinte notas de cem reais. Nenhum bilhete, nenhuma explicação.

Vicente deixou a fazenda andando, sem correr, sem olhar para trás.

O homem do chapéu de palha o esperava no portão. Apenas assentiu com a cabeça.

"Se quiser voltar amanhã, é só chegar no mesmo horário", disse.

Vicente não respondeu. Mas, à noite, voltou.

Capítulo 8: A Vigília Continua

Agora ele sabia o que o esperava. Não era mais um novato, mas um observador da ordem estranha que regia aquele lugar.

As regras pareciam bobas à luz do dia. Mas à noite, tornavam-se sagradas. Entre cabras que não gostam de ser notadas, vacas que caminham como gente e poços que murmuram, havia um fio tênue separando a rotina do delírio.

Vicente tornou-se parte da fazenda. Já não tremia ao ver o capataz. Não desviava mais os olhos da cabra de número trinta e quatro. Apenas respeitava.

Pois entendia: manter tudo igual até o amanhecer era o verdadeiro pagamento. E a fazenda, em silêncio, agradecia.

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