Cemitério em Serra Sombria

Você aguentaria ser assistente de coveiro em um lugar um tanto quanto peculiar?

Lilo

6/1/20254 min read

Cemitério em Serra Sombria

Você aguentaria ser assistente de coveiro em um um lugar um tanto quanto peculiar?

Capítulo 1: A Vaga Noturna

O anúncio era simples: “Procura-se assistente noturno. Renda fixa. Trabalho silencioso.”
Desesperado, Bruno não pensou duas vezes. Recém-desempregado, com aluguel atrasado e a geladeira vazia, qualquer promessa de estabilidade era ouro.

Serra Sombria era uma cidade pequena, encravada entre colinas enevoadas, com um nome que combinava bem com a bruma constante e os olhares vazios de seus moradores. O cemitério, afastado do centro, parecia mais antigo que a própria cidade.

Bruno chegou às 21h45. O portão enferrujado se abriu sozinho. Lá dentro, à luz da lua, o coveiro o aguardava: um homem alto, curvado, de olhar fundo e expressão neutra. Mudo, como o anúncio avisara.

Eusébio entregou-lhe um papel com quatro regras e apontou para o banco de pedra sob um carvalho retorcido. Ali começava seu turno.

Capítulo 2: As Quatro Regras

Bruno leu o papel à luz trêmula de um lampião:

  1. Fique sempre alerta.

  2. Peça desculpas aos deitados de bruços.

  3. Não incomode os sanfoneiros.

  4. Reaja imediatamente à porta da sala de exumação.

Sorriu. "Pegadinha de mau gosto", pensou. Mas o olhar de Eusébio, que ainda o encarava como uma gárgula, o fez engolir qualquer comentário.

Às 22h em ponto, o coveiro começou a caminhar. Bruno o seguiu, sem uma palavra. A escuridão parecia mais espessa dentro do cemitério. Nem coruja, nem grilo. Só o som das botas pisando a terra seca e das folhas farfalhando ao vento.

A noite estava apenas começando.

Capítulo 3: O Primeiro de Bruços

Por volta da meia-noite, Bruno já estava familiarizado com os caminhos entre as lápides. Os nomes nas pedras variavam entre sobrenomes de velhas famílias e epitáfios estranhamente poéticos.

Virando a alameda dos mausoléus, ele parou. No chão, deitado de bruços sobre uma lápide quebrada, havia um homem de paletó antigo. Imóvel. O cabelo prateado refletia a luz da lua. Bruno travou.

Lembrou-se da regra. Engoliu seco. Aproximou-se devagar e, quase num sussurro, disse:

— Me desculpe.

O homem não reagiu. Mas ao dar um passo para trás, Bruno ouviu um leve estalar. Virou-se — não havia nada. Quando olhou de volta, o homem de paletó já não estava mais ali.

Tremendo, voltou ao lado de Eusébio, que esperava calmamente, como se soubesse.

Capítulo 4: Os Sanfoneiros

Às duas da manhã, Bruno ouviu o som: um arrastar arrastado, vindo do fundo da ala dos indigentes. Foi verificar.

Três figuras caminhavam lentamente entre as sepulturas. Cabeças abaixadas, mãos pendendo como se não tivessem peso. Um deles carregava uma sanfona nas costas.

“San—fo—nei—ros”, murmurou, lembrando-se da regra três.
Ficou parado, sem respirar. Eles passaram por ele como se fosse parte do cenário. Nenhum som, nem de passos.

Um deles parou a alguns metros. Levantou a cabeça por um breve instante. Os olhos eram buracos escuros. Bruno congelou.

Sem dizer uma palavra, a figura virou-se novamente e seguiu. Minutos depois, sumiram na névoa.

Eusébio apareceu pouco depois, trazendo um sanduíche embrulhado em pano velho. Bruno comeu em silêncio, com os olhos fixos no chão.

Capítulo 5: A Porta Bate

Às 3h18, um som seco rasgou o silêncio: TOC! TOC! TOC!
Bruno gelou. O som vinha da sala de exumação.

Correu. A porta de madeira batia como se alguém por dentro a empurrasse, ritmadamente.
Seguiu a regra: abriu, entrou, fechou atrás de si.

A sala cheirava a mofo e terra úmida. Caixões antigos, ferramentas, sacos empilhados. Ao fundo, uma vela e uma Bíblia sobre um altar de pedra.

Com mãos trêmulas, acendeu a vela. A chama vacilou, mas se firmou. O som cessou.
Atrás dele, passos... Lentos, arrastados. Virou-se com o coração disparado. Era Eusébio. Olhou-o por longos segundos, depois assentiu e saiu.

Bruno ficou sozinho por mais alguns minutos. Algo ali dentro... observava.

Capítulo 6: A Madrugada dos Ossos

Faltava menos de uma hora para o fim do turno. Bruno tentou manter-se firme, mas o frio começava a roer seus ossos. Havia algo errado no ar.

No setor antigo, lápides estavam... mexidas. Algumas abertas, outras rachadas, como se alguém — ou algo — tivesse saído de dentro.

Eusébio apareceu, silencioso, apontando para uma cova escancarada. Dentro, só havia roupas. Nenhum corpo.

Bruno entendeu. O de bruços talvez tivesse sido este. Talvez muitos outros. Perguntou-se quantos ele tinha deixado passar.

Nesse momento, algo cruzou a névoa correndo. Um vulto. Um grito abafado. Mas não era humano.

Bruno não se moveu. Eusébio também não. O turno estava quase no fim.

Capítulo 7: O Pagamento

Às 4h em ponto, os sinos da igreja distante dobraram. Eusébio caminhou até o portão com Bruno ao lado. Do bolso do paletó, tirou um envelope e o entregou.

Dentro, notas antigas, e uma pequena ficha de papel timbrado: “Turno concluído. Apresente-se novamente às 22h.”

Bruno olhou para o coveiro, que apenas assentiu. Naquele assentir havia algo mais: aprovação, talvez. Ou resignação.

Voltou para casa em silêncio. Dormiu até o fim do dia, sonhando com passos, túmulos e sanfonas.

Na noite seguinte, às 21h45, ele já estava de volta.

Capítulo 8: Círculo Fechado

Na terceira noite, Bruno se sentia... diferente. Os olhos mais atentos. O corpo mais pesado. O medo, mais sutil.

Caminhava como se já conhecesse cada rachadura das lápides. Sabia onde paravam os sanfoneiros. Reconhecia os sussurros da terra mexida.

Desta vez, o homem de bruços falou. Sussurrou algo inaudível, mas Bruno entendeu mesmo assim.

Na sala de exumação, a vela não acendeu de primeira. A Bíblia estava molhada de sangue seco.

Eusébio o observava. Pela primeira vez, sorriu. Um sorriso torto, disforme, que parecia mais uma cicatriz que se abriu.

Na manhã seguinte, não houve pagamento.

Mas havia um novo anúncio na entrada do cemitério.

“Procura-se assistente noturno. Renda fixa. Trabalho silencioso.”

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